domingo, 23 de janeiro de 2011

Cadaverina

 A versão final desta crônica data de 12/2/2007, época dos eventos. Ao publicá-la agora, alterei não todos, mas alguns nomes, em respeito à privacidade das pessoas citadas.  E acrescentei Ubatuba.

Em Araraquara (SP)

    O acesso à casa dos fundos era um corredor de uns bons 15 metros, estreito, um metro de largura, talvez. Ao passar por ele, percebeu um tênue traço de cadaverina no ar. Era noite, nada a fazer.
    Dia claro, trajeto inverso no corredor, lá estava a cadaverina, agora muito mais pronunciada. Nenhuma dúvida. Algo morto, e bem morto de muitas horas, habitava a casa da frente. Um gato, talvez. Várias moscas, encantadas com o cheiro, procuravam as frestas das janelas para entrar na casa.
    Esperou a empregada sacudida chegar. Passou espessa camada de Vick-Vaporub nas narinas, presente a esperança de que ajudasse a mitigar o incrível mau cheiro que exalava dos arredores da casa. Ofereceu o paliativo à empregada, que o recusou. Armaram-se de coragem. Abriram a porta. Recuaram um pouco. Mas, decididos, avançaram. Perto da porta de um dos quartos, precisaram recuar novamente. Voltaram ao ar livre, já impregnado do odor fétido.
    A empregada, desta vez, aceitou a oferta. Depois de expulsarem a octogenária proprietária da casa, que ensaiva entrar também, rumaram para o quarto. Acenderam a lâmpada e abriram a janela. Num instante, a empregada localizou o imenso bichano morto, debaixo da cabeceira da cama. Um gato enorme, cinza, corpo estufado pelos gases, entre os quais cadaverina e putrescina. Retiraram-se rapidamente -- fugiram --, para arquitetar estratégia para a remoção. Uma pá, uma enxada, um saco plástico.
    A coragem já começava a faltar. Mas viam-se diante do tipo da situação em que recuar era impossivel e qualquer delonga, indesejável. Há que ser feito, façamos.
    Ainda não foi daquela vez. O bicho morto, à força da enxada, foi trazido para perto da porta, deixando um rastro de líquido cinza e um pouco de sangue enegrecido. Mas não havia como enfiá-lo no saco, que era por demais pequeno para o corpanzil do gato, macho, sem dúvida, em franca putrefação. O manuseio desajeitado daquele corpo morto expôs a visão do horror: de seu ânus saiam larvas de moscas. E ali davam um jeito de se enfiar, reunidas em pequena multidão,  moscas varejeiras, agradecidas pelo excelente sítio onde depositar seus ovos.
    Recuaram horrorizados, quase escorregando no piso molhado da cozinha, onde uma histórica goteira testemunhava as muitas e fortes chuvas dos últimos dias. Não foi um recuo organizado. Foi uma debandada, escorregões, choques contra portas e paredes, um desespero para ganhar o ar livre. Àquela altura, o entorno contaminado pelos dois gases fedidos tinha jeito de ar puro.
    Desta vez, os equipamentos certos: um saco de lixo grande, uma pá e um comprido pedaço de pau. A empregada manejou a pá e o pedaço de pau. Coube-me garantir aberta a boca do saco, cuidando de esquivar as mãos do contato com aquela massa disforme, repugnante, incrivelmente fétida, que deslizou para dentro do plástico com capacidade para 100 litros. Fecharam imediatamente o saco, com um nó bem forte. Ao levá-lo para fora, sentiu o inesperado peso do bicho morto. Alguns quilos, difícil dizer quantos, mas certamente muito mais pesado que os gatos que já conhecera.
    Depositado o saco numa área externa, buscaram se recompor, correndo ao tanque e à pia para lavarem as mãos e o rosto. Havia urgência nessa inútil ablução. O gás impregnava o corpo através da roupa, que o retia em seus espaços internos. Se alguém se aproximasse deles, certamente sentiria o odor inconfundível da cadaverina.
    Urgia dar destino ao saco preto. Confabularam. Especularam hipóteses. Esperar pelo lixeiro nem foi cogitado. O terreno baldio da esquina poderia servir para uma cova rasa, talvez. A desesperadora situação não os impediu de levar em conta que qualquer vizinho poderia se tornar agressivo, caso visse e aspirasse o cheiro da operação.
    No entanto, urgia dar destino ao saco. Armou-se de um enxadão e seguiu, resoluto, para a esquina. Uma mistura de brita, mato e lixo ocupava o terreno. No entanto, em nenhum dos lugares aparentemente promissores cutucados pelo enxadão a terra mostrou-se adequada. Lixiviada pelas chuvas, a camada logo abaixo das pedras estava muito endurecida, com mais pedras agregadas à terra roxa.
    Notou que estava ali, presente, o cheiro. A janela aberta havia espalhado os gases por toda a redondeza. Estava a mais de cinqüenta metros da casa e lá estava o cheiro, flutuando de concentração conforme a fraquíssima agitação do ar. Não se podia falar em vento. 
    A nova passagem pelo corredor, para devolver o enxadão ao seu lugar, produziu o inconfundível aviso do organismo de que estava muito incomodado pelo odor fétido: contrações no estômago. Mas não chegou a vomitar, em momento algum. Determinou-se a não deixar que isso acontecesse.
    Urgia dar destino. Ligou para a Prefeitura. Obteve o número do telefone da empresa terceirizada que cuidava da remoção de animais mortos. Um único número, que não atendeu. E não atendeu. E meia hora depois continuava não atendendo.
    Ainda tinha alguns conhecidos nos altos escalões da Prefeitura. Telefonou. O eleito para prestar o favor estava de férias. Se o chefe de Gabinete estava de férias, outros também poderiam estar. Pediu, então, à telefonista que passasse a ligação para o substituto. Era a substituta, a secretária de Governo.  Nem chegou a falar com ela. Expôs o caso à eficiente secretária.
    Urgia. Mais meia hora e, ante a falta de resposta, ligou novamente. Desta vez, foi atendido por outra secretária: a primeira estava em seu horário de almoço. Era mesmo horário de almoço. Toda enojada, mas assumindo suas responsabilidades, a empregada estava a preparar o almoço. O fedor da cadaverina estava em todos os cômodos e também, é claro, na cozinha. A segunda secretária buscou as informações e disse que a primeira tinha repassado o problema ao secretário de Obras -- outro conhecido. Pediu mais uns minutos.
    Que ninguém é de ferro, saiu para tomar uma cerveja no boteco conhecido de 40 anos, uns dois quarteirões dali. Todo o primeiro quarteirão, ora mais forte, ora mais insinuante, lá estava o fedor da cadaverina.
    Demorou pouco. Ao voltar, o nefando saco preto já não estava mais lá, a segunda secretária provou ser eficiente. O suspiro de alívio fê-lo engolfar mais um pouco do gás nauseabundo. A cadaverina ainda estava por todos os lados. Almoçar era impossível. Ninguém tocou na comida.
    Tinha o que fazer, à tarde. E o fez. À noitinha, de volta, ainda estava, mais tênue, mas perfeitamente identificável, o horroroso cheiro. Duas horas depois, saiu para tomar o ônibus e voltar para a sua cidade. A octogenária proprietária da casa, por felicidade, estava com o sentido do olfato embotado, e não sentia o fedor. Despediu-se carinhosamente dela, sua mãe.
    Com fome, comeu um pouco antes de tomar o ônibus rumo a Assis. E depois foram horas de viagem, relembrando o odor da cadaverina e da putrescina. Poder-se-ia dizer que a memória olfativa quase fazia as vezes de materializar os gases ali mesmo, no ônibus.
    Devem ser gases mais pesados que o ar. Os efluxos etéreos do corpo morto sobem aos céus. A cadaverina e a putrescina ficam ao rés do chão, para nos lembrar do que somos, para esclarecer que é a vida que nos sustenta íntegros, e no quê sua ausência nos transforma. 


Post scriptum

Em Assis (SP)

    Hoje enterrei o Caipirinha. Falo em primeira pessoa porque foi ato pessoal, enxada e cavadeira, esforço muscular, uma relação pessoal com o bicho morto. Passa-se mês, ou mais, do contato com o bichano exalando cadaverina. Mas era um desconhecido.
    O Caipirinha não. Era conhecido. Malandro, tinhoso, hábil ladrão de comida, restos em pia e mesa. Gostava da ração para gatos da Elis, mas não dispensava a ração para cachorro da Frida. Não era lá muito querido por aqui, é a verdade. Não era bonito, do ponto de vista de ser vistoso, peludo, simpático. Era um caipira, gato cinza, com as listras típicas do gato de rua comum de duas, três décadas atrás. Uma raridade hoje, é verdade, porque houve tantas misturas de genes que caipirinhas autênticos são raros.
    Não era muito querido por aqui, porque era tinhoso e arisco, um tanto ousado. Diferente de sua irmã, a Douradinha, quando a descobrimos fêmea. Até então, era o Amarelisco, o Douradinho. Arisca, a Douradinha. Peguei-a umas duas ou três vezes, quando menorzinha. Mas depois de adolescente e adulta, não mais. No entanto, não é tinhosa. Não é desafiadora. É apenas arisca.
    Ou talvez tudo isso seja uma questão estética. O Caipirinha não era o mais bonito dos gatos. A Douradinha é bonita.
    Confundo-me. Dias atrás perguntei à Marlene se a Douradinha era o Escondidinho, um filhote de uma ninhada de dois gatinhos da gata-mãe toda colorida que escolheu a laje do lavabo para criar seus filhotes. Ela me disse que sim. Confundo-me. Havia mais um gatinho por aqui, mas acho que de outra ninhada: o Puck, que a Tatiana levou, e que o Dostô levou definitivamente. Na minha confusão, o Puck era irmão de algum gatinho, mas não me lembro direito de qual. Talvez da Douradinha. Mas, se era irmão da Douradinha, era também do Caipirinha. No entanto, só me lembro de dois gatinhos filhotes na laje do lavabo.
    Talvez não importe muito a genealogia. O Caipirinha era um bicho de rua, não acolhido, ainda que não inteiramente rejeitado. Quando comuniquei à dona Mercedes a morte do bichado ela comentou que há uma porção de gatos em sua casa, que dão cria por lá, mas que ela não sabe de quem são. Traduzo: ela não assume nenhuma ligação com os bichos. Não são dela. Mas é claro que, de alguma forma, cuida deles: já a vi pondo comida, restos de comida humana, para os bichanos. Ora, no que difere de nossas vistas grossas para com o furto diário de comida da Elis? Não os queremos aqui, não são nossos, não temos responsabilidades para com eles, mas não chegamos a negar-lhes comida. Que vivam, e nos deixem viver.
    Dona Paulina estava em meio à tempestade de sua própria família. O filho  Tonhão berrando que iria matar a irmã -- tem algum nível de retardo mental, o Tonhão --, a postos em sua bicicleta, depois de subtrair 50 reais da mãe. A filha alcoolista e depressiva bradando "Isto é vida"? Dona Paulina pegou a vassoura e pôs-se a varrer a interminável queda de folhas do  frondoso flamboyant que nos nutre, a ela e a nós, de sombra. Ao me ouvir noticiar a morte do gatinho jovem, olhou na direção para onde apontavam meu braço e dedo e, no que creio ter sido um suspiro de tristeza, murmurou que o tinha visto ontem, já doente: "Falei: esse gato está com cara de quem vai morrer". Parece ter ficado um pouco mais entristecida, ao constatar verdadeiro seu vaticínio.
    O primeiro indício de que algo não estava bem com o esperto e atrevido Capirinha foi há uns três ou quatro dias. Ele não se moveu, quando o (para ele) volume imenso da camionete foi em sua direção, desviando-se no último segundo para tomar o alinhamento da calçada, cano de escapamento bem na frente de seu focinho, urrando e expelindo gases quentes e,  creio, fétidos para um nariz felino. Em condições normais, teria fugido bem rápido. No entanto, camionete estacionada, lá estava o Caipirinha, olhos o mais arregalados que conseguia, mas imóvel.
    Depois, uma imagem um tanto chocante: parado perto do portão da garagem, olhos mortiços, algo pendendo de sua narina esquerda, espêsso, muito viscoso, amarelado. Acho que ele já tinha desistido de lamber aquela meleca com cara e, talvez, cheiro de morte. Um muco  consistente, amarelado, típico de um grande ataque às vias respiratórias. Notei então seu corpo esguio. Muito diferente do esguio saudável que sempre teve, rijo, musculatura adivinhável sob o pelo curtinho. Estava esquelético, mostrando os nós da coluna  verebral, uma grande desproporção entre tamanho e volume. E quieto, um pouco entregue. Falei mansamente com ele. Se gato dá de ombros, Caipirinha deu de ombros. E, lentamente, passou por mim, passou pela grade frontl da casa e se abrigou sob o vaso do coqueirinho que nunca cresce, mas também não definha, abandonado que está.
    A cauteloso meio metro, ofereci-lhe vasilhas, uma com água e outra com ração da Elis. Caipirinha só ficou olhando nos meus olhos, sem aparentar ter percebido o cheiro de comida -- que o faria, certamente, em condições normais, arregalar os olhos. Afastei-me. Entrei na casa. Fui ao vitrô espiar, a tempo de vê-lo comer uns dois farelinhos de ração, antes de voltar ao abrigo sob o vaso do coqueirinho. Continuou lá até a madrugada, última vez que o vi com cara de vivo.
    Quase meio-dia, fui à rua ranhetar com a Elis, que tinha resolvido dar um passeio na rua. Logo ao abrir o portão da garagem, percebi a mancha cinzenta, quase na calçada oposta, de um bichinho estirado no chão. O Caipirinha não foi atropelado. Acho que ele apenas não conseguiu chegar à calçada. Deitou-se e morreu a meio metro do meio-fio. Sua cara estava inchada. Os patologistas da Medicina Legal dizem com a mais firme convicção que os tecidos lesionados, em geral no foco da causa da morte, são os primeiros a entrar em putrefação. Cabeça e pescoço do Caipirinha estavam intumescidos, inchados, e não é necessário que eu seja médico legista para dizer que as vias respiratórias superiores estavam em decomposição mais adiantada que seu corpinho magro.
    Cavadeira, enxada. Ao ajeitar seu corpo na enxada, pude constatar o rigor mortis. Nem tão rigoroso, que morreu no fim da madrugada, acho. Tinha ainda um pouquinho de flexibilidade sua coluna. O buraco que cavei era bem apertadinho. Ainda bem que a pouca flexibilidade permitiu curvar um pouco sua espinha para que coubesse na cova bem rasa, da fundura que consegui produzir. O suficiente, tenho certeza, para manter sob a terra o horrososo cheiro da cadaverina, temperada com putrescina. Gases que existem aos traços, parte por bilhão, em organismos vivos. E partes por centena, quando falta vida aos tecidos que um dia foram de organismos vivos.
    Não foi um gesto heróico enterrá-lo, cova rasa e pequenina. Aqui não há serviço terceirizado de remoção de animais mortos. Se há, de qualquer forma o único a atender o telefone da prefeitura, em fim de semana, seria o contínuo em papel de vigilante. Nem tentei. Apenas garanti, a mim, à minha família, e aos vizinhos, que a cadaverina temperada com putrescina não viesse a agredir nossas narinas, nem as menos sensíveis, como as minhas,  nem as mais, como as da Marlene.
    Não foi o primeiro corpinho animal que enterrei ou cremei. É provável que não seja o último. Mas não passo impune por esses momentos.

Em Ubatuba (SP)

Não foi o último. Mas percebo que, mesmo hoje, e estamos no fim de janeiro de 2011, passados oito meses, ainda não consigo falar, nem escrever, sobre minha cachorra pastor alemã Jade, muito doente, cujo sofrimento precisei abreviar.






domingo, 11 de novembro de 2007

Amigos é bom chamar pelo nome

Podemos nos sentir amigos -- e assim sermos amigos -- de quem não nos conheça, e que nem conhecemos pessoalmente. É o meu caso. Sinto-me amigo de quem decifrou o nome de uma porção de amiguinhas, borboletas, que freqüentam o jardim de casa (não consigo chamar de "meu jardim", porque, venturosamente, é compartilhado). Trata-se de Felipe Canuto, e é bom chamá-lo pelo nome, porque amigos é bom chamar pelo nome. Cruzamos textos, fotos e telas no meio virtual, uma vez só, mas para sentir essa coisa poderosa, a amizade, é necessário que seja todo ano, todo mês, todo o momento? Uma vezinha só que seja, não basta?

Tenho amigo que faz anos, uns quatro, que não vejo, e nem por causa disso o sinto menos amigo. Nem falo com ele, na verdade. Mas sei que está lá, ou acolá, pronto para um abraço um tanto frio, porque é avêsso, o meu amigo, a grandes exteriorizações de afeto. Sentirei o calor de seu afeto através das lentes de seus óculos finos, num tipo de sorriso que só o olhar consegue. Trata-se do Anael, porque amigos é bom chamar pelo nome (não é a inteira verdade: chamo-o, na intimidade jocosa, de Manoel de Aniquilino, a ele, cujo nome é Anael de Aquino, que é um aliás de seu verdadeiro nome, Anael de Souza -- porque é bom dizer o nome do amigo).

Indago-me, agorinha mesmo, neste momento, qual a causa do destempêro de querer nomear amigos, recentes e antigos, ainda que só dois, para ilustrar. É que amigos é bom chamar pelo nome, e meu nome mudou, semana passada. Mudou de verdade, no registro civil, que ao antigo foi acrescentado sobrenome, Waideman. Para os meus amigos, todos eles, incluindo meu filho e filhas (que ganhei mais duas), continuo sendo o Elcio de sempre, que é só pelo prenome que me chamam. Mas alerto: se quiserem usar todo o nome, acrescentem, por favor, Waideman. Porque amigos é bom chamar, pelo menos às vezes, nos momentos mais formais, pelo nome completo.

sábado, 12 de maio de 2007

Escreva-me

Clique na imagem abaixo. Depois, clique em "Escreva-me".




É necessário habilitar Java